Perseverança A escalada de um jornaleiro até a neurocirurgia
O livro Perseverança, foi o vencedor do prêmio Clarice Lispector, na categoria de melhor livro biográfico de 2023. A seguir vamos apresentar uma discreta resenha desta obra aos futuros leitores e espero que apreciem: “A sabedoria dos ditos populares às vezes se exprime pelo seu inverso. O que se observa na vida real é que são poucos os caminhos que, em verdade, levam a Roma. Os que os tomam normalmente não só tem o mérito de descobri-los, como, por vezes, também o tem por desbravá-los, deles não se desviarem, e nisso se destacam pela tenacidade. Aqui nessa história que tem tudo para se tornar popular, por seus saberes vividos sem um pingo de chavão, o caminho da neurocirurgia é decisão e descoberta, desbravamento e bússola, ‘artes’ da vida e, todavia e sempre, aquilo que de melhor se expressa, em valor, pelo próprio título: “Perseverança”. Um jornaleiro a se tornar um neurocirurgião? Ora direis, é um livro de superação ou determinismos… Mas há que se ver que nem tudo pode ser causa e efeito com tal ponto de partida e tão diametralmente oposto podium de chegada. Nenhum self made man poderia projetar trajetória de tão estratégicos e complexos desvios ou impor-se tão extravagante e incerto compromisso de superação. A um ficcionista de muito talento também faltaria certamente imaginação suficiente para unir todos e tantos fios. Somente após meio século, ao contemplar todos os lastros de memória e a composição exótica das fotografias afetivas, poderia, atônito, um biografista surpreender a narrativa imantada, ela, ali e à mostra, dando sentido a tantas, mas tantas histórias dispersas. E se tratava, no fim das contas, simplesmente do autor, ele próprio. Faltava, agora, lanterna na popa, enredá-las em escrita. Perseverança são mais de 400 páginas de linguagem direta à sensibilidade e à memória de cada leitor que já viveu a cidade do interior e a infância pé no chão, o futebol no barro, a fuga da escola, as dificuldades do ensino, o trabalho e o estudo, o vestibular e os pequenos e grandes dramas familiares que nos marcam e nos forjam. São quatorze capítulos autônomos, em cronologia fluida, de leitura prazerosa e em estilo e narrativas modelados pelos temas tratados, que trazem desde a ocupação do sul de Minas pelos primeiros colonos, suas cidades nascentes, minas e ferrovias, até o cotidiano da escola de Medicina. Você poderá conhecer a interessantíssima história das Casas de Misericórdia no Brasil, acompanhar o nascimento da Neurocirurgia no Brasil, por seus próceres e expoentes, como Paulo Niemeyer, pai e filho – de cujos conhecimentos e companhia o autor pôde privar, e o romance de vida do jornaleiro-mirim com sua maleta de médico de brinquedo, seus estudos noturnos, as desilusões cotidianas, os sonhos e sua lida, em apurada, pungente e sinceríssima narrativa. Nessa novela biográfica, seu fundo historiográfico se funde aos núcleos semificcionais, pois que as peripécias do estudante, do vestibulando, do residente entremeiam-se com a própria história de Barra Mansa e das Faculdades de Nova Iguaçu e Volta Redonda – e de suas cidades -, esmiudando, a cada parágrafo, as dificuldades das famílias de baixa renda, o dia-a-dia da classe média baixa brasileira, a mostrar o tanto de universal que reside em cada indivíduo e o quanto de mudança e conquistas o homem comum e o país ainda e sempre precisam e devem almejar. Episódios curiosos e anedotas são numerosos, assim como os dramáticos e, em menor número e caros ao autor e ao enredo, os lamentavelmente trágicos. Entre os que gozam da tragicomicidade há o do rapaz que chegou ao hospital com um machado na cabeça (e saiu sem ele); conta-se também a passagem do acidente que vitimou o compositor Herbert Vianna; várias são as estórias “internas” sem que nenhum entendimento das private jokes passe despercebido. Coincidências, há inúmeras, como em toda boa história; porém, nesta, parecem atender a uma perspectiva distinta, uma espécie de desígnio. Há no autor – e isso ficará claro no decorrer de toda a trama – uma preocupação patente com os valores intrínsecos do ser humano, e estes se revelam na moral, na relação com a família e no trato com o outro. O desígnio – diferente do Karma e da simplória predestinação – há que se realizar para quem propugna por esses valores (devido mérito do homem de bem) e pode muito bem se revelar na forma de meras coincidências, nem que só para surpreender e nos deleitar a cada capítulo, como deixas ou motes do bom enredo e da boa “contação”. De pesquisa minuciosa e atenta, narrativa elaborada e conhecimento de causa, o livro de Valério Marcelino Braga anda nos presenteia com rico acervo iconográfico, proporcionando um passeio visual regalado pelos anos de 1930 até os atuais. A escalada de um jornaleiro à neurocirurgia é uma jornada literária a ser compartilhada com leitores de toda e qualquer cepa, pois nos traz as dificuldades inerentes à travessia humana, suas vicissitudes, as aleatoriedades inesperadas, as crises familiares, os dilemas íntimos, a persistência necessária a quem é atirado cedo à lida sem nenhuma das regalias do berço esplêndido. O escritor sergipano Tobias Barretto de Menezes – de curso e percurso turbulentos – já nos dizia que “A Vida é uma Leitura! Viver é lutar! E o desgosto pela vida não é mais do que a incapacidade de se criar um ideal’. Pois então que o que vinha desde o início se manifestando como teleonomia intuitiva, através de sinais indistintos ou vocação inconsciente, não era senão essa pequena palavra ativa: o ideal?… E se a história descrita pelo livro é de luta, a leitura deste, entretanto, é o da fruição literário-afetiva e cúmplice, de curtição do detalhe que importa ao individual e ao histórico, de se poder saborear o erodir das contrafações pela resiliência e a adaptabilidade… Pois sua leitura nos dá esse gosto mais que legitimo: o do ideal vivo e redivivo e paulatinamente conquistado.”
Valério Marcelino Braga Neurocirurgião
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